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As células cancerígenas raramente começam furtivas. Muito pelo contrário, elas anunciam sua presença ao sistema imunológico plantando bandeiras vermelhas químicas diretamente em suas membranas. Uma vez alertadas, as defesas do corpo podem atacar, destruindo células desonestas antes que elas possam causar muito dano. No centro desse sistema de alerta precoce estão os lipídios, compostos graxos vistos anteriormente por biólogos do câncer principalmente como uma fonte de combustível para tumores crescentes.
Mas agora, um novo estudo em Natureza demonstra que um tipo específico de lipídio é realmente crítico para a evasão imune ao câncer — tanto que certas células cancerígenas não podem proliferar sem ele. As descobertas confirmam suspeitas de longa data de que esse lipídio não é apenas um ator-chave na biologia do câncer (e, portanto, um alvo-chave de medicamentos), mas também demonstram que os medicamentos existentes aprovados pela FDA, projetados para inibir a produção de lipídios, podem galvanizar o sistema imunológico contra o câncer.
“As células cancerosas estão alterando a forma como esse lipídio é metabolizado, o que por sua vez distorce os sinais de ‘coma-me’ que as células malignas geralmente produzem”, diz a primeira autora Mariluz Soula, ex-aluna de pós-graduação no laboratório de Kivanç Birsoy e agora cientista da Lime Therapeutics. “Isso pinta um quadro muito diferente do papel que os lipídios desempenham no crescimento do câncer.”
Uma misteriosa conexão entre lipídios e câncer
Os cientistas sabem há muito tempo que as células cancerígenas alteram o metabolismo lipídico, mas geralmente se supõe que as células cancerígenas estejam devorando esses lipídios para obter energia, consumindo as moléculas de gordura para ajudar o tumor a crescer e se espalhar muito além das células saudáveis.
“Sabíamos pela literatura que níveis elevados de lipídios se correlacionam com a gravidade do crescimento e da metástase do câncer, mas não estava claro como”, diz Soula. O laboratório Birsoy, em conjunto com o laboratório de Gabriel D. Victoria, se propôs a responder a essa pergunta rastreando os genes envolvidos nesse processo. Eles então implantaram uma série de células cancerígenas, cada uma sem um gene diferente, em camundongos com e sem sistemas imunológicos — revelando, assim, quais lipídios um câncer não pode viver sem.
O resultado: os chamados “esfingolipídeos”. Descobertos no final dos anos 1800 pelo químico alemão Johann Ludwig Wilhelm Thudichum, os esfingolipídeos foram nomeados em homenagem à enigmática Esfinge da tradição grega por causa de sua estrutura e função intrigantes. Dois séculos depois, os esfingolipídeos são menos misteriosos. “Sabemos que os esfingolipídeos não são realmente usados para energia”, diz Soula. “Eles estão principalmente na membrana celular para criar andaimes para proteínas de sinalização.”
Essa descoberta levantou uma possibilidade intrigante. O metabolismo lipídico em células cancerígenas era realmente apenas a história de células famintas tentando consumir mais energia? Ou era uma parte fundamental dos esforços da célula cancerígena para manipular sutilmente a sinalização celular e driblar o sistema imunológico?
Rumo a uma nova estratégia terapêutica
Para testar como os esfingolipídeos estavam impulsionando o crescimento do câncer, a equipe recorreu a um medicamento aprovado pela FDA usado para tratar a doença de Gaucher — um distúrbio genético caracterizado por uma capacidade prejudicada de quebrar lipídios. O medicamento essencialmente bloqueia a síntese de glicoesfingolipídeos, e a equipe descobriu que isso prejudicava o crescimento do tumor em modelos de câncer pancreático, pulmonar e colorretal.
Eles também descobriram que a depleção de glicoesfingolipídios impediu a formação dos “nanodomínios lipídicos” que agrupam moléculas de sinalização na membrana, impactando os receptores de superfície da célula na superfície celular de uma forma que os tornou mais sensíveis a uma resposta imune. Essas descobertas sugerem que as células cancerígenas acumulam glicoesfingolipídios para obscurecer sinais inflamatórios, e que interromper a produção de glicoesfingolipídios pode deixar as células cancerígenas vulneráveis ao sistema imunológico.
“Todos pensavam em níveis elevados de lipídios como uma fonte de energia para as células cancerígenas consumirem”, diz Soula. “Descobrimos que é muito mais sutil. Os lipídios não são apenas combustível, mas um mecanismo de proteção para as células cancerígenas que modula como elas se comunicam com o sistema imunológico.”
Trabalhos futuros determinarão se isso é verdade para vários tipos de câncer. A equipe testou uma variedade de tipos, mas encontrou esse mecanismo em ação em cânceres dependentes de KRAS (assim chamados devido ao oncogene mutado que os impulsiona). Ainda assim, os resultados iniciais podem ter impacto clínico significativo, dado o quão agressivos muitos cânceres dependentes de KRAS, como o câncer de pâncreas, tendem a ser. Com base em suas descobertas, a equipe sugere que intervenções medicamentosas e dietéticas que inibam a produção de esfingolipídeos podem ajudar a aumentar a eficácia das imunoterapias existentes.
“As dietas podem impactar muitos aspectos da biologia do câncer”, diz Birsoy. “Acreditamos que modular os lipídios da dieta pode ser uma via interessante para atingir a capacidade das células cancerígenas de escapar das células imunes.”
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